quarta-feira, 29 de abril de 2009

O Amor I - Amizade


_______________________________________________________________D.Porther


Para conhecer-nos é necessário ver-nos em um amigo. O amigo é nosso outro eu. Há amigos cujas almas se misturam e se confundem tanto com as nossas que quando nos damos conta não conseguimos encontrar mais a costura que as juntou. "A amizade é virtude ou implica em virtude", como disse Montaigne. Por vezes, certos amigos nos estendem tanto a sua amizade que desafia a moderação, transcende o amor de tal forma, que nos parece que esse amor sempre esteve conosco. É tamanha a fusão que carregam facilmente consigo nossas dores, nossos sentimentos de tristeza, nossos temores. E de repente, nada mais é seu ou meu. Vontades se misturam, toques reúnem-se, não há mais distinções. Laços diversos atam-nos para sempre. E a amizade torna-se união perfeita, sem fissuras, sem brechas, sustentáveis por si só.
A amizade é mesmo um mistério. Como pensar que é possível uma ligação assim, perfeita e completa, quando vivemos num mundo transitório e passageiro, um mundo de movimento e finitude? Cabe, nesse mundo, coinscidência tão absoluta de uma identificação tão plena? Sim,Cabe! Misteriosamente cabe! Posto que a amizade é o mais belo meio e lugar. A amizade é uma aliança, uma sociedade que fazemos pura e simplesmente por vontade própria, onde não rivalizamos, não dispersamos. Buscamos o prazer pelo significativo prazer de ser e ter amigos. A semelhança da afinidade, a convivência forte das coisas, a identidade abençoada pelo Cosmos. Tornamo-nos santos quando buscamos o amigo, nosso parente espiritual. O consolidamos como vínculo de sangue. E damos qualidade e forma a esse convívio intenso e tatuado para sempre em nossas vidas. Queremos o amigo por ele mesmo, por ele ser quem é e o que é, simplesmente.
Assim é o amor e a amizade que me une a meu pai. Porque procedendo dele sou o seu outro, o outro ele mesmo. Só por isso pude descobrir quem eu era no dia que perdi meu pai. Ao vê-lo, sem vida, entendi quem eu era. Aquele momento foi de mudança e movimento. Percebi a multiplicidade tênue e inconstante da própria vida, no meu espaço e no meu tempo. Percebi a jornada que desejava pra mim. Meu pai, ali naquele instante, foi o espelho onde identifiquei-me. Nítido, refletiu, sem sombras, o mais verdadeiro de mim. Um tempo que não sei contar porque foi muito tempo. E senti, cruelmente, o momento - esse que deparei-me privado do amigo mais caro e mais íntimo. Aquele do laço consaguíneo, aquele da costura sem emendas, transcedente, sem fissuras e brechas, o amigo perfeito e completo. Esse amigo que olhei para nele reconhecer-me. Minha solda fraterna. Clarificados, tornaram-se ali meus conflitos, meus laços, minhas experiências.
Minha imagem agora se sustenta de tal forma, que a leveza vive a me rondar, posto que, saber-se torna tudo tão mais original, compreensível e sólido, tal qual a solidez de ter sido forjado dentro do corpo frágil de meu pai. O medo perde a importância, a obediência tem outro valor, o redor, que temporariamente me pareceu estranho, retorna familiarmente em seu momento original. A floresta que naqueles dias era tão fria e distante, tão apagada, reencontra-se comigo trazendo uma infinita paz com seus coloridos e seus sons de amanhecer. Sinto-me melhor. Entendi que a vida não precisa ser entendida, precisa ser apreciada e aceita. A inquietude terminou; aprendi o que é separação, vida; aprendi que preciso aprender a viver e sobretudo a morrer. Porque agora sei para onde se encaminham os meus conhecimentos, os meus desejos, o meu mistério.
Assim tornei-me diferente para ser exatamente como sou, dentro de mim: igual. Tornei-me mais tolerante, mais generoso, cuidadoso com a razão e aberto a emoção. Vivo um dia por vez, um dia a cada dia, conhecendo o elemento singular do que é viver, existencialmente. Hoje, dedico boa parte dos meu tempo a escrever, para consagrar também a lembrança, a lembrança de um mútuo amor, um amor amigo, em nome desse laço que aponta-me a verdade e a vontade determinada, que aponta-me uma incrível força. Força que transporta-me para além de tudo que eu possa dizer e ser.

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